Usar a palavra 'mulambo' é racismo? LANCE! (site esportivo) conversa com historiadores e busca o significado
L! falou com André Garone, jornalista e autor de livros sobre a história do Vasco; e com o historiador e ativista David Gomes, consultor oficial do Vasco sobre questões raciais/Vasco
Matheus Andrade e Ricardo Guimarães - 19/03/2022
O termo “mulambo” é historicamente usado por torcidas de Vasco, Fluminense e Botafogo para "inferiorizar" o arquirrival Flamengo, apesar de um contexto de preconceito racial que remete aos tempos da escravidão. O significado ainda é desconhecido por parte do público e gera debate nos dias atuais.
O assunto voltou aos holofotes após o rapper Djonga pedir desculpa por usar a palavra em referência ao clube rubro-negro e, logo depois, por causa do clássico entre Vasco e Flamengo, na semifinal do Cariocão, que tem seu jogo de volta marcado para este domingo.
O LANCE! conversou com
dois historiadores especializados em Vasco que concordam que o termo precisa
ser revisto pela torcida cruz-maltina. O cântico virou assunto nas redes
sociais nestas últimas semanas e trouxe a público o questionamento do
significado do termo. De acordo com o dicionário, o vocábulo "molambo" significa: pedaço de pano velho, roto e sujo, roupa esfarrapada.
Segundo a especialista Monique Cassiano, mestre em estudos da linguagem pela
PUC-RIO, o termo deriva de um pensamento preconceituoso com os povos pobres e
negros escravizados.
- Com uma pesquisa um pouco mais apurada, é possível descobrir que “molambo”
inseriu-se em nosso vocabulário por meio dos negros escravizados, pois dava
nome ao pano que algumas tribos africanas amarravam à cintura. Com o passar do
tempo, o termo foi tomando a forma depreciativa e de insulto e passou a ser
usado como um adjetivo para caracterizar alguém sujo ou mal arrumado. Com base
nos conhecimentos e debates da formação e das dinâmicas raciais da sociedade
brasileira, é possível afirmar a relação do uso atual do termo com o fato dele
originalmente se referir a uma vestimenta que era uma marca cultural de povos
africanos. Com isso, a palavra “molambo” permanece nos dias de hoje com a
denotação negativa e de xingamento por conta de suas bases históricas e aos
povos aos quais ela remete - explicou a educadora.
A polêmica do termo
Por meio do Twitter, o influencer
vascaíno Wallace Neguere contestou o uso de um dos cantos
cruz-maltinos que chama os torcedores do Flamengo de "mulambos". A
manifestação foi uma maneira de dar um basta no ato:
- Eu não uso mais o termo mulambo, convencido de ser uma palavra racista e nem
canto mais as músicas que tem cunho machista e homofóbico, independente da
época que ela foi criada. Já chegou a hora da gente se posicionar - escreveu
Neguere.
A música em questão
é uma paródia do cântico dos argentinos na Copa de 2014, “Brasil, decime qué se siente” . A adaptação feita pelos vascaínos e entoada por
outros torcedores rivais tem o termo no seu título: “Mulambo, me diz como se sente”. A letra faz menção ao fato do time não ter estádio. Contudo, houve
progressões e também a utilização do termo em outras canções dos torcedores do
Vasco.
Wallace continua
sua explicação sobre a revisão do termo nas torcidas organizadas do clube:
"Eu gostaria de levantar uma questão muito importante para as torcidas
organizadas. Será que já não estaria na hora de rever alguns cânticos? Existe
um momento diferente hoje na nossa sociedade, que não podemos tratar como fato
isolado. Ex: Racismo, homofobia, Machismo e Xenofobia."
Em dois dos seus
comentários, Neguere explicou o seu novo posicionamento sobre o assunto:
- Tenho que passar exemplo para meus filhos, se eu luto contra o racismo não
posso ser conivente com isso. A mudança tem que começar por mim. Em uma
conversa com algumas pessoas. Abre espaço para interpretação, irmão. Isso
continua não sendo um termo pejorativo, porém, discriminatório pela forma de se
vestir. Por via das dúvidas, é melhor parar - afirmou o influencer.
A atenção ao uso do
termo também partiu de torcedores de outras equipes, como do próprio Flamengo.
Também pelo Twitter, o flamenguista Antonio Tabet, o "Kibe Loco",
humorista do "Porta dos Fundos", tentou explicar aos seus seguidores
a origem do termo.
'"Mulambo”, pra quem não sabe, era como os Senhores de Engenho se
referiam aos escravos angolanos. Racismo encruado travestido de rivalidade
esportiva ainda é racismo" - disse o humorista.
Apesar do
posicionamento, o debate acabou longo. Nos comentários de Neguere e Kibe Loco,
muitas pessoas discordavam da origem etimológica do termo, dizendo que ele
apenas reforça o sentido de que o flamenguista "se veste mal" como
forma de ironizar o uniforme do adversário.
É necessário mudar
Jornalista do LANCE!, especializado em Vasco e autor dos livros sobre o
clube "1898 em diante" e "Da Queda ao Bi", André Garone
falou sobre a necessidade de rever o cântico:
"A sociedade vem passando por mudanças significativas no combate a
discriminação. E o futebol nada mais é um que um reflexo dela. Então, ofensas
que antes eram consideradas apenas gritos de torcida, hoje são entendidas como
racismo ou homofobia, o que é crime" - ressalta o jornalista.
As coisas podem mudar ?
"Infelizmente não será do dia para a noite que isso mudará, exatamente por
estar enraizado na sociedade e na cultura da arquibancada, mas é o início de um
processo que afetará principalmente as próximas gerações de torcedores. E de
maneira positiva" - destaca.
Acha que este movimento nas redes é parte dessa mudança ?
"O movimento
reafirma o posicionamento de inclusão que sempre marcou a história do clube e
de sua torcida. Toda mudança tem, inicialmente, também uma rejeição natural,
mas que com o tempo se dissolve. Não é nem uma questão de clube, mas, sim, da
sociedade como um todo. É um movimento que todos deveriam aderir, independente
de clube que torcem" - explica.
Acabar com o cântico enfraquece a rivalidade?
"Não é acabar com a rivalidade, com a disputa de torcidas, mas, sim, com o
preconceito e a discriminação" - finalizou André.
Contradição contra a sua própria história
Também em entrevista ao LANCE!, o historiador e ativista David Gomes, que é
consultor oficial do Vasco sobre questões raciais e responsabilidade social,
deu sua opinião sobre o assunto.
"(Começou) muito tarde (sobre o movimento contra o cântico). Sou a favor
de parar. Um clube com a história do Vasco de combate ao racismo não pode compactuar com esse tipo de ofensa racista" - destacou David.
"Quem é a favor da continuidade desse xingamento utiliza como argumento o
significado duro da palavra no dicionário, mas sabemos bem que a linguagem vai
além do que tá no dicionário" - alertou.
David usa a música "Camisas Negras", onde é dito que o Vasco já
lutou por negros e operários, lutou contra o racismo, como um comparativo
ao cântico, ressaltando a incoerência de parte da torcida.
Porque este movimento é necessário?
"Isso (o termo racista) começou a incomodar alguns torcedores negros de esquerda do Vasco, que acharam que é uma contradição. A gente canta camisas negras, né, que fala da história antirracista do Vasco institucional e depois chama os caras de mulambo?"
No último dia 16, o Tribunal de Justiça Desportiva instaurou um inquérito após os "cantos discriminatórios" feitos pela torcida do Vasco da Gama, no clássico contra o Flamengo, pela primeira fase do Campeonato Carioca. Em caso de punição, a torcida e o Vasco podem ser penalizados em até cinco jogos.