domingo, 2 de outubro de 2011

Qual é a sua língua?


por Francisco Achcar


Durante encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, Francisco Achcar, doutor em Letras Clássicas e coordenador da disciplina de português das unidades do Colégio Objetivo, tratou, entre outros assuntos, da diferença abissal que há, no Brasil, entre a língua falada e a escrita.

A complexidade do idioma utilizado no Brasil é resultado de uma fragmentação oral em dialetos regionais, que não foi acompanhada pelo registro escrito. “A língua falada não pode ser diretamente transcrita, precisa ser editada. Eu sei que nosso encontro está sendo gravado e depois será transcrito, mas se vocês não editarem vai ficar um horror”, brinca, de maneira metalinguística.

Achcar publicou Carlos Drummond de Andrade, volume da coleção Folha Explica, e é autor de A Rosa do Povo e Claro Enigma: Roteiro de Leitura (Ática, 1993). A seguir, alguns trechos da conversa.


Dialetos

A polêmica recente a respeito do livro Por uma Vida Melhor – publicado pelo Ministério da Educação e distribuído para um imenso número de escolas no Brasil – é um exemplo de como todo mundo pode se tornar especialista em determinado assunto. Muitas pessoas contestam o fato de o livro divulgar como certo dizer “os homi chego” ou “os pneu tá furado”, pois isso seria admitir o uso de uma linguagem degradada.

É um fantástico coro repressivo, obscurantista, moralista, autoritário que se voltou contra o livro, absolutamente sem saber o que ele diz. O livro apresenta o caso de concordância de um dialeto brasileiro, que todos nós conhecemos, no qual se diz, por exemplo, “as casa amarela”.

Os autores do livro explicam que na língua padrão se diria “as casas amarelas”. Quando você diz, no dialeto oral, a frase “as casa amarela”, tem um sinal de plural que é o “s” depois do “a”. Na língua chamada culta, ao escrever “as casas amarelas”, colocamos três sinais de plural. A crítica feita foi de que o livro estaria legitimando esse dialeto.

O que esse ponto de vista que bombardeou o livro quer é que certos dialetos sejam condenados na escola como errados, mas isso não vale para outros dialetos que contêm “erros” do mesmo calibre.

A gente simplesmente tolera os erros dos nossos dialetos e não tolera os dos outros. Como os outros dialetos são de gente pobre, queremos que sejam reprimidos. Imagine, por exemplo, em uma casa de classe média, o pai conta sua última aventura empresarial e diz “hoje fui pego de surpresa”.

O filho adolescente o interrompe para corrigi-lo, pois o particípio passado de pegar é pegado. Então, o correto seria “eu fui pegado de surpresa”. Mas quem utiliza, hoje em dia, a forma correta? Eu tenho dificuldade em falar “pegado”, porque as pessoas olham para mim como para um ignorante e ainda falam “coitado, é professor de português e comete um erro desses”. São muitos dialetos do português e eles estão muito distantes da norma culta.


Portugal e Brasil


Em Portugal, que é um país que sempre teve um índice impressionante de analfabetismo, é incrível como os analfabetos estão muito próximos do código culto. Construções que no Brasil chamam atenção se utilizadas, como mesóclise, voz passiva sintética, construções mais complexas, são correntes no linguajar de Portugal.

O sistema pronominal brasileiro, por exemplo, é muito rico e elegante, mas perdemos o costume de empregar determinadas construções. Se tivéssemos que escrever “eu mandei o livro a ele”, mas quiséssemos substituir o substantivo “livro” e a expressão “a ele”, poderíamos utilizar uma bela junção de pronomes, que ficaria “eu lho mandei”. Alguém tem coragem, não digo nem de falar, mas de escrever isso no Brasil? Nem em literatura vemos esse tipo de uso.

Em Portugal, a língua escrita nunca esteve muito afastada da falada. Alguns escritores, que para nós são complicados de ler, são até populares em Portugal, como foi o Camilo Castelo Branco. Outro exemplo que posso dar é o do grande escritor Décio Pignatari, que há uns anos traduzia Catulo – um poeta romano do primeiro século antes de Cristo – e queria fazer jus à coloquialidade do escritor, que, nos seus poemas líricos mais extraordinários, não se afasta um milímetro da língua coloquial.

O Décio queria fazer uma lírica com o pronome que a gente utiliza para falar, que é o “você”. Porém, a tradição literária consagrou o “tu”, pronome utilizado na língua falada de Portugal e em poucos dialetos brasileiros. Aqui, o “tu” é marginal e poucas vezes vem com a concordância na segunda pessoa, normalmente vem com o ?verbo na terceira pessoa. No Brasil, foi substituído por “você”, mas “você” não consegue entrar para a língua escrita ou literária, nem na música popular.

“Você” é um pronome muito desajeitado: primeiro porque ele tem duas sílabas e é longo; segundo porque ele pede verbo na terceira pessoa, o que torna muitas vezes ambígua a referência, você não sabe se está falando de um terceiro ou do interlocutor. Esse é um exemplo forte de como a língua escrita brasileira, inclusive a língua escrita no seu plano mais refinado, o da elaboração literária, da elaboração poética, ainda tem problemas derivados do fato de que não se criou no Brasil realmente uma língua culta brasileira.


Educação escolar


Um equívoco muito comum – e é sempre motivo de divergência entre alguns colegas linguistas e mim – é a identificação da língua culta com a elite. Isso absolutamente não é verdade quando se trata da elite econômica. Os endinheirados não são conhecedores ou praticantes da norma culta, pois pouquíssimos são bem-educados linguisticamente.

Acho que a função da escola é ensinar a norma culta, ou seja, a língua escrita, porque a oral vai ser influenciada pelo ambiente escolar, mas de forma indireta, porque ela é controlada muito mais pelo meio social do que pelas exigências curriculares. Não é exagero dizer que quem fala e escreve é bilíngue, porque o escrito é muito distante do falado, mesmo quando não há o abismo existente no português.

É perfeitamente possível conhecer a língua escrita sem conhecer a falada e vice-versa. O colégio tem a missão de ensinar justamente a língua que o sujeito não sabe, que é a escrita, e se possível alguma outra língua falada que ele não conheça, mas nisso a escola se mostrou totalmente ineficiente.

Além disso, com o advento do computador, o número de pessoas que eram leitores frequentes e deixaram de ser é gigantesco. É verdade que num computador a gente lê bastante, praticamente só lê, mas não é a mesma coisa que aquela leitura continuada, de uma longa obra, de uma obra na qual você está totalmente imerso. Então, acho que certamente formar leitores seria outra missão fundamental da escola, mas isso já é uma ambição muito grande, porque os professores hoje não são mais leitores.

O e-mail trouxe também uma nova onda de comunicação escrita que, paradoxalmente, traz uma oralidade gritante. As principais características dessa comunicação são a imediaticidade e uma coloquialidade extrema, com códigos próprios, específicos para concisão nas mensagens. É uma forma nova de oralidade, embora seja oralidade escrita. A oralidade se caracteriza por imediaticidade e por grande dependência do contexto, enquanto a escrita mais elaborada contém todo o seu contexto.

Esses códigos de e-mail e bate-papo incluem até mesmo gestos, representados pelos chamados emoticons, que nos lembram o caráter oral dessa comunicação.       



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