segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Literatura e gramática

Hélio Consolaro*

As regras não podem ser grilhões para os artistas, muito menos as gramaticais. Uma das características da 1.ª geração modernista, brasileira, foi se rebelar contra o lusitanismo que ainda predominava entre os escritores, principalmente os parnasianos. Com o crack na economia mundial, em 1929, a burguesia paulista empobrecida, arrefeceu a rebeldia de sua prole e o experimentalismo foi abandonado pela 2.ª geração.

O Romantismo já havia quebrado alguns elos linguísticos com o português de Portugal, enquanto os últimos foram arrebentados com o Modernismo. Era uma geração de jovens burgueses de São Paulo que não sabia o que queria, mas tinha certeza do que não queria. Rechaçava o formalismo parnasiano, a poesia chapa branca do Parnasianismo, o bom comportamento.

Mário de Andrade, um dos homens mais cultos da época, foi um dos mentores Semana da Arte de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Esse episódio marcou o início do Modernismo Brasileiro, escandalizando com seus festivais irreverentes a burguesia, freqüentadora assídua da daquela casa.

A rebeldia não era por ignorância, mas por opção. A proposta era aproximar a literatura brasileira do idioma brasileiro (ou português brasileiro), por isso, os escritores da 1.ª geração afrontavam as pessoas cultas da época, escrevendo no português coloquial, a língua das ruas.

Revelando um pouco essa irreverência gramatical, reproduzimos aqui um trecho da carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira: “Aboli a morte do mecanismo da minha vida e embora já esteja com meus trinteoito anos, faço projetos pra daqui a dez anos, quinze, como si pra mim a morte não tivesse de vim... como todos pronunciam.” (Mário de Andrade. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1958, p. 269-270).

O escritor usou “trinteoito” (transcrição fonética da fala popular), em vez de “trinta e oito” e “vim” no lugar de vir. A forma “vim” é a 1.ª pessoa do singular do pretérito perfeito. “Hoje eu venho; ontem eu vim”. Na gramática tradicional, não se pode usar “vim” em lugar de “vir”, que é o infinitivo do verbo. Mas a troca do “vir” por “vim” constitui uma das marcas mais visíveis da linguagem informal, fenômeno lingüístico acatado pelo escritor modernista.

No português culto, o correto seria: “como se pra mim a morte não tivesse de vir”. Talvez, o poeta tivesse à procura de rima (mim/vim), mesmo num texto em prosa, embora detestasse esse artifício poético.

Como escreveu Manuel Bandeira:
[...]“A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/ Ao passo que nós/ O que fazemos/ É macaquear / A sintaxe lusíada [...]

*Hélio Consolaro é professor de Português, jornalista e escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras.

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