Luís Antônio Giron
Época - 24/05/2011
Os meios de comunicação abriram espaço para debater um livro didático que supostamente traria “erros de português”. Trata-se de Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, que reúne uma série de textos de linguistas e professores de português. O compêndio foi aprovado pelo Ministério da Educação, aplicado em escolas e usado por meio milhão de estudantes do ensino fundamental e médio em todo o território do Brasil. A obra ganhou fama porque tenta explicar as diferenças entre a norma culta e o linguajar cotidiano, e exemplificava as ocorrências do registro coloquial com orações como “nós pega os peixe” ou “nós vai à roça”. Esse tipo de abordagem, segundo muitos âncoras de rádio e TV, desinformaria as crianças em vez de educá-las. Segundo eles, é preciso ensinar o “português correto” aos estudantes, para que eles possam crescer dotados com mais cultura e mais utilidade social. Permitam-me fazer deles as suas palavras...
Os meios de comunicação abriram espaço para debater um livro didático que supostamente traria “erros de português”. Trata-se de Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, que reúne uma série de textos de linguistas e professores de português. O compêndio foi aprovado pelo Ministério da Educação, aplicado em escolas e usado por meio milhão de estudantes do ensino fundamental e médio em todo o território do Brasil. A obra ganhou fama porque tenta explicar as diferenças entre a norma culta e o linguajar cotidiano, e exemplificava as ocorrências do registro coloquial com orações como “nós pega os peixe” ou “nós vai à roça”. Esse tipo de abordagem, segundo muitos âncoras de rádio e TV, desinformaria as crianças em vez de educá-las. Segundo eles, é preciso ensinar o “português correto” aos estudantes, para que eles possam crescer dotados com mais cultura e mais utilidade social. Permitam-me fazer deles as suas palavras...
Curiosamente, no meio da tentativa de criar polêmica, esses paladinos
do idioma cometeram uma série daquilo que eles próprios consideram
“erros de português”. Não pretendo enumerar as besteiras pronunciadas,
até porque considero serem ocorrências normais na língua cotidiana
falada, inclusive nos meios de comunicação. Mas ouvi muita bobagem, e
muita discussão entre gente graúda irritou-me pelo mesmo motivo que
estavam discutindo: a ignorância em relação ao assunto com que lidavam: a
língua.
Sem muito alarde, os polemistas instantâneos foram baixando a voz – e
desapareceram. Como em denúncias que são alardeadas em manchetes e
depois desmentidas em corpo minúsculo, a conversa murchou sem
retratações. Muita gente só pegou os ecos dos bate-bocas, sem nem terá
sabido do que se tratava na realidade. Mesmo assim, e por isso mesmo,
vejo-me na obrigação gramática e moral de discutir o problema,
elevando-o a um nível menos colérico.
Vou tentar desemaranhar os enganos. Antes de mais nada, é preciso
examinar a questão da linguagem e do idioma de uma forma minimamente
lógica. Peço um pouco de paciência, em nome da verdade. Vamos
diferenciar gramática normativa e gramática descritiva.
A gramática normativa, aquela que rege as regras daquilo que é
consagrado em termos de fala e escrita em uma determinada sociedade e
nação, não tem foro de verdade absoluta. Ela não passa de uma disciplina
sem fins científicos, uma espécie de enciclopédia das boas maneiras.
Quem afirma isso não sou eu, mas o mais venerável gramático do Brasil,
Evanildo Bechara, em sua Gramática escolar da língua portuguesa, que vem
sendo publicada há décadas. Eu próprio estudei nela no ginásio, e a
mantenho comigo para momentos graves como este.
Diz mestre Bechara: “Cabe à gramática normativa, que não é uma
disciplina com finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos
recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem
utilizados em circunstâncias especiais do convívio social”. E segue: “A
gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo o
uso e a autoridade os escritores corretos e dos gramáticos e
dicionaristas esclarecidos”. Por conseguinte, a gramática normativa não
passa de um manual de etiqueta, ensinado às crianças ou aos analfabetos
no início de sua formação. Os professores dizem aos pequenos que não
devem dizer “nós vai à balada” assim como aconselham a não pôr o dedo no
nariz ou produzir ruídos inconvenientes. Claro que é necessário ensinar
os cidadãos a se comportar bem. Escrever e falar corretamente em
qualquer língua é um pré-requisito para o crescimento profissional e o
convívio socialmente aceitável. Quem fala ou escreve inadequadamente
(ou, como dizem os polemistas, quem comete “erros de português”) é
sumariamente execrado e excluído.
Ora, tal código de posturas do município do idioma vai de encontro (e
não “ao encontro de”) ao que acontece entre os falantes de uma língua
na realidade concreta. O que ocorre na língua em seus vários registros
diz respeito à gramática descritiva, disciplina científica baseada nas
pesquisas da linguística. Seu objetivo é examinar, descrever e fornecer
uma teoria para o funcionamento fonético, fonológico, morfológico,
sintático e lexicográfico de determinada língua. Por isso, estuda o que
ocorre e o que ocorreu nos usos de um idioma, sincrônica e
diacronicamente. Cito novamente Bechara: “Cabe tão-somente à gramática
descritiva registrar como se diz numa língua funcional, numa determinada
variedade que integra uma língua histórica: o português do Brasil; o
português de Portugal; o português do século XVI ou do século XX; o
português de uma comunidade urbana ou rural; o português de Eça de
Querós ou de Machado de Assis, e assim por diante. Por ser de natureza
científica, não está preocupada em estabelecer o que é certo e errado no
nível do saber idiomático”.
Em outras palavras, a linguística anota e reconhece tudo o que é dito
nos vários registros: o coloquial, o culto, o dialetal e até o
idioletal, a fala particular. Sua missão não é emitir juízos de valor e
distinguir o certo do errado. É mostrar que a língua consiste em um
organismo dinâmico, que opera em vários níveis de fala. E que cada nível
possui o seu código. O problema de usar um vocabulário de um registro
em outro não é de erro, mas de inadequação. Nós se atrapaia, nóis comete
erro. Assim cantavam a dupla caipira Tonico e Tinoco em suas letras de
toadas singelas que tanto encantavam Guimarães Rosa. Assim Juó Bananère e
Adoniran Barbosa alimentaram o folclore do bairro do Bexiga em São
Paulo com italianismos tão inconvenientes como inesquecíveis. Assim
cantaram os boiadeiros nordestinos em sextilhas e decassílabos. Os erros
desses poetas populares são exemplares.
Ora, por que não apresentar aos estudantes do ensino médio a
realidade da fala cotidiana cientificamente estudada É o que faz o
compêndio Por uma vida melhor. O volume diferencia o registro popular da
norma culta. Uma das passagens mais polêmicas da obra diz o seguinte:
“Posso falar 'os livro'?' Claro que pode, mas dependendo da situação, a
pessoa pode ser vítima de preconceito linguístico”. A começar pelos
autores que fizeram a afirmação. Os professores que escreveram o livro,
ora vejam só, foram vítimas do preconceito linguístico, que não deixa de
se ser também um preconceito científico. É verdade: gritar um palavrão
no campo de futebol quando o juiz comete uma injustiça tem aceitação
social. Se, entre uma cerveja e outra, eu digo a meu tio: “Nóis não vai
pescar neste fim de semana?” ninguém vai achar estranho, mesmo que eu
seja um doutor da USP. Da mesma forma, falar palavrão ou dizer uma frase
imprecisa em uma tribuna ou cátedra será abominado – salvo os
políticos, que podem ser popularescos em suas falas no Congresso
Nacional sem que nada lhes aconteça. Aliás, dá-lhes mais visibilidade. A
imunidade parlamentar inclui a imunidade linguística...
Ao condenar as “falhas” do livro didático em questão, os donos da
verdade cometeram um erro duplo de linguística: compreenderam a
gramática normativa como uma verdade absoluta e condenaram quem não a
segue. A postura raivosa não tem nada de respeitável. Ao contrário, só
faz emergir prejulgamentos levianos. Cometeram um erro básico de
interpretação.
Tudo isso me leva a pensar que grande parte da intelligentsia agiu
ideologicamente ao abordar um assunto tão delicado. (E entre os
intelectuais incluo nós, jornalistas, mesmo que muitos de nossos
luminares da República considerem a profissão algo próximo à do
cozinheiro, que, por sua vez, não deixam de ter evoluído
intelectualmente nos últimos anos por causa da moda gastronômica.).
Gente com diploma vistoso abandonou qualquer atitude minimamente
científica para destilar o mais desavergonhado preconceito linguístico;
leia-se: preconceito de classe. Desconfio de que a ascensão econômica e
cultural das classes C e D andam assustando certos defensores de
privilégios, inclusive os linguísticos. Talvez tenham medo de que os
pobres (ou, na expressão deliciosamente forjada em São Paulo há pouco
tempo, “a gente diferenciada) lhes usurpem as cátedras e os palanques. É
outro problema que atinge o Brasil: até mesmo a plêiade que se arvora
em autoridade é mal-educada, desinformada e, pior, mal-intencionada. A
elite intelectual brasileira não tem “níver”.
Luís Antônio Giron, editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV.
Luís Antônio Giron, editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV.
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