Evanildo Bechara |
Evanildo Bechara é imortal. Desde 2000, ocupa a cadeira de número 33 da Academia Brasileira de Letras. Mas, aos 84 anos, mantém - com o vigor do menino que, aos 11, órfão de pai, saiu de Recife rumo ao Rio de Janeiro para completar seus estudos na casa de um tio-avô - dois hábitos inabaláveis: andar de ônibus e almoçar diariamente no Toledo, restaurante por quilo vizinho de frente à Casa de Machado de Assis, no centro do Rio de Janeiro, só para ouvir histórias da vida real.
Hoje autoridade máxima no Brasil quando o assunto é o novo acordo ortográfico, ele - que é autor da Moderna Gramática Brasileira - se prepara para celebrar o fim do trema: "Tiramos um peso dos ombros de quem escreve. Longe de ser um prejuízo, é um lucro".
A partir de 1º de janeiro de 2013, além do trema, também se vão o acento agudo de "ideia" e o circunflexo de "voo" e "enjoo". O alfabeto passará a ter 26 letras, ao incorporar "k", "w" e "y".
A data marca a entrada definitiva no Brasil da nova ortografia da Língua Portuguesa - cujas normas foram organizadas pela ABL na quinta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.
As regras não são novas. Estão em vigor desde janeiro de 2009, quando o Brasil e os demais membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa - Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste - concordaram em uniformizar a grafia das palavras.
Os brasileiros tiveram quatro anos para se adequar. Durante esse período, tanto a grafia anterior como a nova foram aceitas oficialmente. Mas, a partir de ano que vem, concursos e provas escolares passam a cobrar o uso correto da nova ortografia. Documentos e publicações também deverão circular adaptados às novas regras.
O Brasil, diz Bechara, está preparado para receber as novas regras em definitivo. "Para o grande público, a ortografia está ligada à memória visual. Escrevemos as palavras como as vemos escritas. Hoje, vamos ao aeroporto e já vemos a palavra voo sem aquele acento circunflexo que se usava."
Ainda há, no entanto, muitos desencontros. Às vésperas de o acordo entrar em vigor, a senadora Ana Amélia propôs que o Brasil avance mais devagar na sua implantação. Ela é autora de um projeto que estende por mais seis anos, até o fim de 2019, o período de adaptação das novas regras. Como a proposta ainda está parada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Casa e não há tempo hábil para a tramitação, a senadora pediu audiência com Gleisi Hoffmann, ministra-chefe da Casa Civil, para tratar do assunto. O pedido ainda está sem resposta.
Em Portugal, que tem até dezembro de 2014 para concluir o processo de implantação da nova grafia, a resistência ao acordo é ainda maior. A polêmica se intensificou depois que o poeta Vasco Graça Moura, ao assumir o cargo de diretor do Centro Cultural de Belém - uma das mais importantes instituições culturais do país -, determinou que fosse suspensa a aplicação das novas regras nos serviços sob sua tutela. Circula também na internet uma petição para que o parlamento português vote o fim do acordo. "É claro que sabemos que toda mudança de hábito traz certa ojeriza a quem é obrigado a mudar, mas vale a pena o sacrifício. Uma língua que tem uma só ortografia circula no mundo com mais facilidade", garante Bechara.
A seguir, os melhores momentos da conversa.
A partir de 1º de janeiro passam a vigorar, definitivamente, as novas regras do acordo ortográfico. O Brasil está pronto para ele? Ortografia é só a vestimenta das palavras. Quando se faz um acordo ortográfico, não se mexe na língua, se mexe apenas na roupagem das palavras. Desde 1911, Brasil e Portugal tentam aproximar seus sistemas de grafar palavras. Tivemos quatro anos para nos adaptar e eles foram suficientes. Principalmente, graças à imprensa, que abraçou o novo sistema.
O acordo se efetivou? Sim, porque a ortografia, para o grande público, está ligada à memória visual. Escrevemos as palavras como as vemos escritas. Como a imprensa e os livros começaram a usar o sistema desde o primeiro ano, as novas grafias das palavras começaram a aparecer. Hoje, vamos ao aeroporto e já vemos a palavra "voo" sem aquele acento circunflexo que se usava. As pessoas vão vendo as palavras sem acento e, na hora de grafar, escrevem sem acento. Isso permitiu que o acordo fosse, aos poucos, sendo dominado pelo público em geral.
O que muda, essencialmente, a partir do ano que vem? Mudam poucas coisas e, nessas mudanças, o Brasil teve de ceder muito mais do que Portugal. Dos seus hábitos de escrita, os portugueses só foram obrigados a abandonar a consoante não articulada, aquela que se escreve, mas não se pronuncia. No novo sistema, o que não se pronuncia não se escreve.
Mas muitos dizem que as palavras mudaram mais em Portugal. Quando pegamos em números, as mudanças para os brasileiros, de fato, são quase insignificantes: a norma escrita teve 0,43% de suas palavras mudadas. Em Portugal, 1,42%. Por quê? Porque Portugal usa e abusa das consoantes que se escrevem, mas não se pronunciam.
E nós vamos conseguir viver sem o trema? Começamos a aprender a língua pelo ouvido, quando crianças. Depois, aprendemos pelos olhos, porque lemos as palavras. O sistema fonético é anterior ao sistema gráfica. Ao abolir o trema, tiramos um peso dos ombros de quem escreve. A falta do trema, longe de ser um prejuízo, é um lucro. Deixamos de escrever o trema, mas podemos pronunciar as palavras da maneira como estamos acostumados a ouvi-las.
Quais são os benefícios do novo acordo para o Brasil? O benefício do novo acordo não é só para o Brasil. Quando o sistema ortográfico começou a ser estudado, a preocupação era apenas facilitar a escrita, portanto o movimento de simplificação ortográfica ajudava a pedagogia da língua. Há também um fator de maturidade. Uma língua não pode ter duas ortografias oficiais - como acontece hoje, em que temos a do Brasil e a de Portugal.
O fator comercial também foi levado em consideração? Claro. O valor econômico e político da língua foi um dado importante para a unificação ortográfica. Em qualquer área em que seja usada, tanto no Brasil, como em Portugal ou na África, a língua portuguesa será grafada de uma só maneira. Isso significa que um livro editado em português pode correr todos esses países, porque a ortografia é a mesma.
Mesmo com as diferenças sendo tão pequenas? Mesmo que pequenas, as diferenças entre o português escrito no Brasil e o de Portugal fazem com que um livro publicado no Brasil seja reeditado nos outros países de língua portuguesa para poder ser comercializado. Isso aumenta o custo da produção. Uma ortografia unificada só serve para dar lucro.
Vale a pena. É claro que sabemos que toda mudança de hábito traz certa ojeriza a quem é obrigado a mudar, mas vale a pena o sacrifício. Uma língua que tem uma só ortografia circula no mundo com mais facilidade. Repercute não só no comércio da língua, mas também em sua qualidade cultural.
Mesmo assim, o acordo não é unanimidade. No Senado, por exemplo, há um movimento que propõe que o Brasil avance mais devagar na implantação das novas regras. Esse movimento do Senado gorou. Na visão da Academia, esse assunto está encerrado desde que o acordo foi assinado. Se o movimento que quer brecar a entrada definitiva do acordo avançar, o que acredito não ser possível pela falta de tempo, o sistema começará a ser desacreditado. Qualquer mudança só seria aconselhável depois que ele entrasse em vigor.
Portugal tem até o final de 2014 para se adaptar às novas regras, mas lá o acordo ainda enfrenta muita resistência. Um dos grandes inimigos do acordo é o poeta Vasco Graça Moura, mas a discordância só está nos jornais. Há uma grande corrente da imprensa que já usa o acordo, mas existe uma minoria que prefere não usar. É só isso.
Paralelamente à simplificação da ortografia, há um movimento em defesa do uso coloquial da língua em detrimento da norma culta. Na última prova do Enem, algumas questões trouxeram, em seus enunciados, o uso oral, mas foi exigida a norma padrão na redação. O que o senhor acha disso? A língua se apresenta muito variada para atender os compromissos do homem erudito, da pessoa escolarizada e também do analfabeto. Todos se servem da língua para a comunicação. A língua não se concentra nem na norma padrão, nem na norma coloquial. Ela permite as variações. A língua padrão não é contra a coloquial e vice-versa. Já em uma prova do Enem, na qual se busca saber a competência de um jovem que passou tantos anos na escola, a preocupação não deve ser a língua coloquial, mas, sim, a padrão.
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