domingo, 10 de março de 2013

O conceito de erro em Língua


Não devemos pensar na língua como algo que se polariza entre o "certo" e o "errado".

Ernani Terra*

Visto que existem vários níveis de fala, o conceito do que é "certo" ou "errado" em língua deve ser considerado sob esse prisma. Na verdade, devemos falar em linguagem adequada. Tome-se como parâmetro a vestimenta. Qual seria a roupa "certa": terno e gravata, ou camiseta, sandália e bermuda? 

Evidentemente, você vai dizer que depende da situação: numa festa de gala, deveremos usar o terno e a gravata. Já, jogando bola com amigos na praia, estaremos utilizando bermuda e camiseta. Veja que não existe a roupa "certa", existe, isto sim, o traje adequado. Poderíamos dizer que "errado" seria comparecer a uma festa de gala vestido de camiseta e bermuda.
Com a linguagem não é diferente. Não devemos pensar na língua como algo que se polariza entre o "certo" e o "errado". Temos de pensar a linguagem sob o prisma da adequação.
Numa situação de caráter informal, como num bate-papo descontraído entre amigos, é "certo", isto é, é adequado que se utilize a língua de maneira espontânea, em seu nível coloquial, portanto. Já numa situação formal, como num discurso de formatura, por exemplo, não seria "certo", isto é, não seria adequado utilizar-se a língua em sua forma coloquial. Tal situação exige não somente uma vestimenta, mas também uma linguagem adequada.
Porém, será que é esta visão que a escola nos passa acerca do que é certo ou errado em matéria de língua? Na maioria das escolas, cremos que isso não ocorra. O grande problema é que a norma gramatical é posta como um imperativo categórico, isto é, ela não diz o que você deve fazer nesta ou naquela situação, ela diz como você deve se portar em todas as situações. Quantas vezes fomos advertidos de que uma determinada construção estava "errada", sem que se levasse em conta o contexto em que ela aparecia?
A escola, por privilegiar o ensino da gramática normativa, encara o "erro" como tudo aquilo que se desvia da norma. Se a norma estabelece que não se deve usar o verbo ter impessoalmente, isto é, substituindo o verbo haver no sentido de existir, construções como:
"Tem dois alunos jogando bola", "Tinha uma mulher na biblioteca" são consideradas erradas pela maioria dos professores, independentemente do contexto em que são utilizadas. É praxe pedir que as corrijam para: "Há dois alunos jogando bola", "Havia uma mulher na biblioteca". 

Tal correção muitas vezes nos soa estranha, porque baseamos o julgamento daquilo que é certo ou errado naquilo que comumente ouvimos. E, como ouvimos constantemente o verbo ter empregado daquela forma, tendemos a julgar construções em que ele aparece impessoalmente como corretas. E, por encontrarmos, mesmo em bons autores, aquele tipo de construção, é difícil aceitá-las como incorretas. 

Veja, a propósito, construções utilizadas por dois grandes autores de língua portuguesa:

No meio do caminho tinha ma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.  
(Andrade, Carlos Drummond de. "No meio do caminho". In Alguma poesia)


Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu  
(Chico Buarque - "Roda Viva")


A pergunta é inevitável: se o Carlos Drummond de Andrade e o Chico Buarque podem usar o verbo ter no lugar de haver, por que eu também não posso?
Nem sempre essa pergunta nos é respondida com exatidão. Respostas evasivas como: "trata-se de uma licença poética", ou "ele pode, mas você não" são comumente usadas. A questão é explicada mostrando-se que se trata de um registro típico da fala popular, já incorporado à linguagem literária. Aliás, há muito tempo!
É preciso atentar, também, que nem todo desvio da norma é considerado erro pela gramática normativa. Só devemos considerar "erro" o desvio da norma quando este se dá por ignorância, ou seja, por não conhecê-la, o falante dela se desvia. Porém, nem sempre tais desvios são decorrentes da ignorância do falante em relação à linguagem padrão. Há desvios intencionais, ou seja, o falante o comete com a intenção deliberada de reforçar sua mensagem. Não cremos que alguém pense que Drummond e Chico Buarque teriam usado o verbo ter no lugar de haver por não conhecerem as normas gramaticais da língua.
Os desvios da norma decorrentes da ignorância do falante em relação à linguagem padrão constituem, segundo a gramática normativa, vícios de linguagem, e por ela são condenados. Já os desvios da norma enquanto reforço da mensagem não constituirão erros e são classificados como figuras de linguagem. O que, portanto, confere ao desvio da norma a qualidade de figura e não de vício (leia-se erro) será necessariamente a originalidade e a eficácia da mensagem. Veja que o pleonasmo ora será considerado vício, ora figura de linguagem, dependendo da eficácia da mensagem.
Em: "Tive uma hemorragia de sangue" e "A brisa matinal da manhã" , temos um vício de linguagem, denominado pleonasmo, já que a repetição nada trouxe de original ou eficaz à mensagem. Porém em: "A mim ensinou-me tudo" (Fernando Pessoa) e "A ti trocou-te máquina mercante" (Gregório de Matos), a repetição do pronome oblíquo tem a intenção deliberada de reforçar a mensagem para torná-la mais original.
A língua evolui através da fala. Muitos desvios com relação à norma são incorporados pela língua culta e mesmo literária. Fica então uma pergunta: quando o desvio deixa de ser considerado erro e passa a ser norma?
Isso ocorre quando todos os membros da comunidade, através de um acordo tácito, estejam também dispostos a cometer o desvio e aceitá-lo como regra. Em consequência, o desvio deixa de ser infração à norma para se tornar regra. Veja que você pode criar a norma, todavia, ao dispor-se a cometer o desvio. Lembre-se das palavras de Kant: "Age apenas segundo aquelas máximas através das quais possas, ao mesmo tempo, querer que elas se transformem numa lei geral".
*Ernani Terra é professor de Português, formado pela USP e possui vários livros didáticos publicados pela Editora Scipione.

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